23/05/2012 (Quarta-feira)
ILUMINE-SE!
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OS DIREITOS AUTORAIS DE "SOLILÓQUIOS E VIDA FELIZ" JÁ CADUCARAM, POIS O AUTOR FALECEU NO ANO 430 DE NOSSA ERA. PORTANTO, HÁ MAIS DE SETENTA ANOS. POSSO POSTAR, VOCÊ PODE COPIAR. É DE DOMÍNIO PÚBLICO. LEI 9610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 - ART. 41. OS DIREITOS PATRIMONIAIS DO AUTOR PERDURAM POR SETENTA ANOS CONTADOS DE 1° DE JANEIRO DO ANO SUBSEQÜENTE AO DE SEU FALECIMENTO, OBEDECIDA A ORDEM SUCESSÓRIA DA LEI CIVIL. PARÁGRAFO ÚNICO. APLICA-SE ÀS OBRAS PÓSTUMAS O PRAZO DE PROTEÇÃO A QUE ALUDE O CAPUT DESTE ARTIGO.
Este é o último capítulo de Solilóquios.
(Continuação)
Cremos em algumas coisas; recordamos outras; outras não se percebem.
A — Seja como dizes e de boa vontade sigo os teus conselhos. Mas eu gostaria que, antes de terminar este volume, ao menos me esclarecesses qual a diferença entre a verdadeira figura, que se concebe pela inteligência, e aquela que o pensamento simula pela imaginação, que em grego se diz fantasia ou fantasma.
R — Tu pedes uma coisa que ninguém pode ver se não tiver muita limpidez de mente e para cuja visão estás pouco exercitado. Aliás, não fazemos outra coisa, com todos esses rodeios, senão fazer com que te exercites para estar apto a vê-la. Contudo, à medida que possas ser ensinado, explanares brevemente a grande diferença que existe. Supõe que tenhas esquecido alguma coisa e que outros queiram que te recordes daquilo. Então eles, mencionando coisas diversas como se fossem semelhantes, te perguntam: é isso ou aquilo? Mas nem sequer lhe vem à mente aquilo que desejas recordar e, contudo, vês que não é o que eles mencionam. Quando isto acontece, achas que é esquecimento total? Já o próprio discernimento, pelo qual não admites ser erroneamente convencido, de certo modo é parte da recordação.
A — Assim me parece.
R — Aqueles com os quais isto acontece ainda não veem a verdade, mas não podem ser enganados nem induzidos a erro e sabem suficientemente o que buscam. Entretanto, se alguém te disser que sorriste alguns dias depois de ter nascido, não ousas afirmar que isto é mentira; e se a pessoa que o afirma é digna de fé, não se diz que recordar-te-ás disso, mas sim acreditarás, pois todo aquele tempo está sepultado por um grande esquecimento. Acaso julgas diferentemente?
A — Ao contrário, concordo com isso.
R — Esse tipo de esquecimento difere muito daquele outro, que se considera esquecimento intermédio. Há outro tipo de esquecimento mais vizinho e mais próximo à recordação e verdade que se quer saber. Isso ocorre quando vemos alguma coisa e com certeza reconhecemos que a vimos alguma vez e afirmamos que a conhecemos; mas esforçamo-nos em lembrar-nos e relembrar-nos de onde, quando, como e com quem nos chegou ao conhecimento. Se isso se refere a uma pessoa, procuramos também identificar onde viemos a conhecê-la. E se essa pessoa nos der algum indício, de repente tudo se infunde na memória como se fosse uma luz, sem necessidade de mais esforço para nos recordarmos. Conheces esse tipo de coisas, ou te é desconhecido?
A — Que há de mais claro que isso? Com muita frequência acontece comigo.
R — Assim são os bem instruídos nas artes liberais, já que eles, aprendendo, as resolvem e, de certo modo, as escavam, pois sem dúvida estavam soterradas neles pelo esquecimento. Contudo, não estão contentes nem desistem enquanto não chegarem a contemplar ampla e plenamente toda a face da verdade, da qual certo esplendor já se projeta nessas artes. Mas destas, certas falsas cores e formas como que se fundem no espelho do pensamento e, com frequência, enganam os que investigam e os induzem a erro fazendo-os pensar que aquilo é tudo o que eles sabem e procuram. São as imaginações que devem ser evitadas com grande precaução; elas resultam enganosas, variando conforme se mude o espelho do pensamento, ao passo que a face da verdade permanece una e imutável. Então, o pensamento imagina e apresenta aos olhos quadrados de diferentes tamanhos, mas a mente interior, que quer perceber a verdade, deve voltar-se, se possível, àquele princípio segundo o qual ela julga que todos aqueles quadrados são simplesmente quadrados.
A — E se alguém nos disser que ela julga segundo o que os olhos costumam ver?
R — Mas, se está bem instruída, por que haverá de julgar que uma verdadeira esfera, por maior que seja, só tem um único ponto de contato com um plano verdadeiro? Por acaso o olho alguma vez viu ou pode ver isso, quando algo deste tipo nem se pode representar pela própria imaginação? Não é isso mesmo que experimentamos quando mentalmente traçamos imaginando um círculo mínimo e, depois, traçamos os raios ao centro? Se traçarmos dois raios entre os quais haja um intervalo que mal possa ser tocado pela ponta de uma agulha, já não podemos, nem mesmo com a imaginação, traçar outros raios no meio, que cheguem ao centro sem nenhuma confusão. Entretanto, a razão declara que podem ser traçados inumeráveis raios que, naqueles espaços incrivelmente estreitos, não podem se tocar senão no centro, de tal modo que em cada intervalo entre os raios possa também ser traçado outro círculo. Uma vez que a imaginação não pode realizar isto e falha mais que os próprios olhos pelos quais ela penetrou na alma, fica evidente que ela difere muito da verdade e que ela não é vista, enquanto esta é objeto da visão.
Estas coisas serão discutidas com mais cuidado e maior sutileza quando começarmos a tratar da inteligência, que é uma parte que nos propusemos, quando, na medida de nossa possibilidade, estiver esclarecido e discutido tudo o que agita a respeito da vida da alma. Pois não creio que seja pequeno o seu medo de que a morte humana, ainda que não mate a alma, traga contudo o esquecimento de todas as coisas e da própria verdade que tenhamos descoberto.
A — Não se pode dizer o bastante quanto é terrível este mal. Pois que a vida eterna seria aquela, ou não se deveria até preferir a morte, se a alma viesse a viver do modo como vemos que vive numa criança recém-nascida? Isto para não falar da vida no útero, pois acho que também aí existe alguma vida.
R — Coragem. Como já sentimos, Deus estará presente conosco que procuramos, o qual promete sem mentira alguma, para depois deste corpo, outro felissíssimo e pleníssimo da verdade.
A — Seja como esperamos.
(Por Aurelius Augustinus *354 +430).
Este é o último capítulo de Solilóquios.
(Continuação)
Cremos em algumas coisas; recordamos outras; outras não se percebem.
A — Seja como dizes e de boa vontade sigo os teus conselhos. Mas eu gostaria que, antes de terminar este volume, ao menos me esclarecesses qual a diferença entre a verdadeira figura, que se concebe pela inteligência, e aquela que o pensamento simula pela imaginação, que em grego se diz fantasia ou fantasma.
R — Tu pedes uma coisa que ninguém pode ver se não tiver muita limpidez de mente e para cuja visão estás pouco exercitado. Aliás, não fazemos outra coisa, com todos esses rodeios, senão fazer com que te exercites para estar apto a vê-la. Contudo, à medida que possas ser ensinado, explanares brevemente a grande diferença que existe. Supõe que tenhas esquecido alguma coisa e que outros queiram que te recordes daquilo. Então eles, mencionando coisas diversas como se fossem semelhantes, te perguntam: é isso ou aquilo? Mas nem sequer lhe vem à mente aquilo que desejas recordar e, contudo, vês que não é o que eles mencionam. Quando isto acontece, achas que é esquecimento total? Já o próprio discernimento, pelo qual não admites ser erroneamente convencido, de certo modo é parte da recordação.
A — Assim me parece.
R — Aqueles com os quais isto acontece ainda não veem a verdade, mas não podem ser enganados nem induzidos a erro e sabem suficientemente o que buscam. Entretanto, se alguém te disser que sorriste alguns dias depois de ter nascido, não ousas afirmar que isto é mentira; e se a pessoa que o afirma é digna de fé, não se diz que recordar-te-ás disso, mas sim acreditarás, pois todo aquele tempo está sepultado por um grande esquecimento. Acaso julgas diferentemente?
A — Ao contrário, concordo com isso.
R — Esse tipo de esquecimento difere muito daquele outro, que se considera esquecimento intermédio. Há outro tipo de esquecimento mais vizinho e mais próximo à recordação e verdade que se quer saber. Isso ocorre quando vemos alguma coisa e com certeza reconhecemos que a vimos alguma vez e afirmamos que a conhecemos; mas esforçamo-nos em lembrar-nos e relembrar-nos de onde, quando, como e com quem nos chegou ao conhecimento. Se isso se refere a uma pessoa, procuramos também identificar onde viemos a conhecê-la. E se essa pessoa nos der algum indício, de repente tudo se infunde na memória como se fosse uma luz, sem necessidade de mais esforço para nos recordarmos. Conheces esse tipo de coisas, ou te é desconhecido?
A — Que há de mais claro que isso? Com muita frequência acontece comigo.
R — Assim são os bem instruídos nas artes liberais, já que eles, aprendendo, as resolvem e, de certo modo, as escavam, pois sem dúvida estavam soterradas neles pelo esquecimento. Contudo, não estão contentes nem desistem enquanto não chegarem a contemplar ampla e plenamente toda a face da verdade, da qual certo esplendor já se projeta nessas artes. Mas destas, certas falsas cores e formas como que se fundem no espelho do pensamento e, com frequência, enganam os que investigam e os induzem a erro fazendo-os pensar que aquilo é tudo o que eles sabem e procuram. São as imaginações que devem ser evitadas com grande precaução; elas resultam enganosas, variando conforme se mude o espelho do pensamento, ao passo que a face da verdade permanece una e imutável. Então, o pensamento imagina e apresenta aos olhos quadrados de diferentes tamanhos, mas a mente interior, que quer perceber a verdade, deve voltar-se, se possível, àquele princípio segundo o qual ela julga que todos aqueles quadrados são simplesmente quadrados.
A — E se alguém nos disser que ela julga segundo o que os olhos costumam ver?
R — Mas, se está bem instruída, por que haverá de julgar que uma verdadeira esfera, por maior que seja, só tem um único ponto de contato com um plano verdadeiro? Por acaso o olho alguma vez viu ou pode ver isso, quando algo deste tipo nem se pode representar pela própria imaginação? Não é isso mesmo que experimentamos quando mentalmente traçamos imaginando um círculo mínimo e, depois, traçamos os raios ao centro? Se traçarmos dois raios entre os quais haja um intervalo que mal possa ser tocado pela ponta de uma agulha, já não podemos, nem mesmo com a imaginação, traçar outros raios no meio, que cheguem ao centro sem nenhuma confusão. Entretanto, a razão declara que podem ser traçados inumeráveis raios que, naqueles espaços incrivelmente estreitos, não podem se tocar senão no centro, de tal modo que em cada intervalo entre os raios possa também ser traçado outro círculo. Uma vez que a imaginação não pode realizar isto e falha mais que os próprios olhos pelos quais ela penetrou na alma, fica evidente que ela difere muito da verdade e que ela não é vista, enquanto esta é objeto da visão.
Estas coisas serão discutidas com mais cuidado e maior sutileza quando começarmos a tratar da inteligência, que é uma parte que nos propusemos, quando, na medida de nossa possibilidade, estiver esclarecido e discutido tudo o que agita a respeito da vida da alma. Pois não creio que seja pequeno o seu medo de que a morte humana, ainda que não mate a alma, traga contudo o esquecimento de todas as coisas e da própria verdade que tenhamos descoberto.
A — Não se pode dizer o bastante quanto é terrível este mal. Pois que a vida eterna seria aquela, ou não se deveria até preferir a morte, se a alma viesse a viver do modo como vemos que vive numa criança recém-nascida? Isto para não falar da vida no útero, pois acho que também aí existe alguma vida.
R — Coragem. Como já sentimos, Deus estará presente conosco que procuramos, o qual promete sem mentira alguma, para depois deste corpo, outro felissíssimo e pleníssimo da verdade.
A — Seja como esperamos.
(Por Aurelius Augustinus *354 +430).
FIM
Amanhã inicia-se o primeiro capítulo de "A Vida Feliz"— Santo Agostinho.
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