11/06/2012 (Segunda-feira)
ILUMINE-SE!
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OS DIREITOS AUTORAIS DE "SOLILÓQUIOS E A VIDA FELIZ" JÁ CADUCARAM, POIS O AUTOR FALECEU NO ANO 430 DE NOSSA ERA. PORTANTO, HÁ MAIS DE SETENTA ANOS. POSSO POSTAR, VOCÊ PODE COPIAR. É DE DOMÍNIO PÚBLICO. LEI 9610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 - ART. 41. OS DIREITOS PATRIMONIAIS DO AUTOR PERDURAM POR SETENTA ANOS CONTADOS DE 1° DE JANEIRO DO ANO SUBSEQÜENTE AO DE SEU FALECIMENTO, OBEDECIDA A ORDEM SUCESSÓRIA DA LEI CIVIL. PARÁGRAFO ÚNICO. APLICA-SE ÀS OBRAS PÓSTUMAS O PRAZO DE PROTEÇÃO A QUE ALUDE O CAPUT DESTE ARTIGO.
Basta o gozo dos bens temporais para ser feliz?
Refleti agora no que segue: é infeliz todo o que sente necessidade de algo que lhe falta? O que torna difícil de ser aceita tal opinião é o fato de que muitas pessoas desfrutam grande abundância de bens perecíveis. Para elas, tudo é fácil porque ao simples aceno de suas mãos realizam-se todos os seus desejos. Mas, sem dúvida, esse tipo de vida está sujeito a grandes dificuldades. Imaginemos um homem, tal como aquele Orata, de quem nos fala Cícero. Quem ousaria dizer que Orata sofria de alguma indigência, ele que se achava cumulado de riquezas, do mais refinado luxo dos prazeres? Ele, a quem nada faltava do que contribui ao deleite, ao encanto da vida, ao gozo de perfeita saúde? Possuía em abundância propriedades rendosas e amigos muito prestativos. Servia-se judiciosamente de tudo para seu bem-estar. Em breves palavras: feliz sucesso coroava todos os seus empreendimentos e planos. Contudo, poderia dizer alguém dentre vós: quem sabe, não tenha ele querido possuir mais do que já tinha? Não o sabemos. Suponhamos, porém, e isso basta a nosso propósito, que ele não tenha ambicionado nada mais do que possuía. Parece-vos que lhe faltava alguma coisa?
Licêncio aventurou:
— Ainda que eu concordasse que nada lhe tenha faltado do que desejava — e isso não sei bem como poderia admiti-lo em um homem que não fosse sábio — acontece, sem dúvida, que ele temia (pois, como dizem, era homem de não pouca inteligência), que por inesperado revés de fortuna viesse a perder todos esses bens. Com efeito, não lhe seria muito difícil compreender que todos aqueles benefícios — quão vultuosos fossem — estavam na dependência dos caprichos da sorte.
— Vês então, Licêncio, disse eu sorrindo, que esse ricaço estava justamente impedido por suas próprias qualidades naturais de chegar à vida feliz. Quanto mais inteligente fosse ele, mais perceberia que poderia perder todos os seus bens. Esse receio o perseguiria e verificar-se-ia o dito popular:
"A um homem sem segurança, seu próprio mal o torna conformado".
A maior carência : a falta de sabedoria
Essas palavras levaram Licêncio e os demais a rirem.
— Contudo, continuei: examinemos com mais atenção esse problema. Orata sentia-se sem segurança, mas não se achava na indigência. E é aqui que se encontra a questão. Com efeito, encontrar-se na indigência consiste em não ter o que se necessita; e não no receio de perder o que se possui. Ora, esse homem de quem falamos não se encontrava na indigência, mas era infeliz porque temia a perda de seus bens. Portanto, não seria exato dizer que todo homem infeliz está na carência de alguma coisa. Minha mãe, cuja opinião eu defendera (cf. IV,23), deu assim como os outros o seu assentimento à minha conclusão. Acrescentou em seguida:
— Contudo não vejo, e ainda não compreendo bem, como se pode separar indigência da infelicidade. Porque esse Orata ainda que fosse rico e, como dizíeis, nada ambicionasse a mais, acontece pelo fato mesmo de temer a perda de todos os seus bens, encontrava-se na indigência. Faltava-lhe justamente a sabedoria. E, então, haveríamos de declarar ser alguém indigente por lhe faltar dinheiro e riqueza e não por lhe faltar sabedoria?
A essas palavras, todos prorromperam em exclamações. Eu mesmo não me sentia pouco satisfeito, especialmente por ter sido minha mãe quem enunciara um dito tão importante como conclusão. Havia eu justamente preparado essa afirmação para o final, tirada dos mais notáveis escritos dos filósofos.
— Percebeis agora, concluí, qual a diferença existente entre conhecer múltiplas e diversas doutrinas e ter o espírito inteiramente voltado para Deus? Pois essas palavras que acabamos de admirar, de onde procedem elas a não ser daquela divina fonte?
Aqui, Licêncio exclamou com alegria:
— Certamente, não poderia ser dito nada de mais verdadeiro nem de mais divino. Porque, de fato a maior e mais deplorável indigência é a privação da sabedoria. Ao contrário, nada pode faltar a quem possui a sabedoria.
(Continua)
(Por Aurelius Augustinus *354 +430).
Basta o gozo dos bens temporais para ser feliz?
Refleti agora no que segue: é infeliz todo o que sente necessidade de algo que lhe falta? O que torna difícil de ser aceita tal opinião é o fato de que muitas pessoas desfrutam grande abundância de bens perecíveis. Para elas, tudo é fácil porque ao simples aceno de suas mãos realizam-se todos os seus desejos. Mas, sem dúvida, esse tipo de vida está sujeito a grandes dificuldades. Imaginemos um homem, tal como aquele Orata, de quem nos fala Cícero. Quem ousaria dizer que Orata sofria de alguma indigência, ele que se achava cumulado de riquezas, do mais refinado luxo dos prazeres? Ele, a quem nada faltava do que contribui ao deleite, ao encanto da vida, ao gozo de perfeita saúde? Possuía em abundância propriedades rendosas e amigos muito prestativos. Servia-se judiciosamente de tudo para seu bem-estar. Em breves palavras: feliz sucesso coroava todos os seus empreendimentos e planos. Contudo, poderia dizer alguém dentre vós: quem sabe, não tenha ele querido possuir mais do que já tinha? Não o sabemos. Suponhamos, porém, e isso basta a nosso propósito, que ele não tenha ambicionado nada mais do que possuía. Parece-vos que lhe faltava alguma coisa?
Licêncio aventurou:
— Ainda que eu concordasse que nada lhe tenha faltado do que desejava — e isso não sei bem como poderia admiti-lo em um homem que não fosse sábio — acontece, sem dúvida, que ele temia (pois, como dizem, era homem de não pouca inteligência), que por inesperado revés de fortuna viesse a perder todos esses bens. Com efeito, não lhe seria muito difícil compreender que todos aqueles benefícios — quão vultuosos fossem — estavam na dependência dos caprichos da sorte.
— Vês então, Licêncio, disse eu sorrindo, que esse ricaço estava justamente impedido por suas próprias qualidades naturais de chegar à vida feliz. Quanto mais inteligente fosse ele, mais perceberia que poderia perder todos os seus bens. Esse receio o perseguiria e verificar-se-ia o dito popular:
"A um homem sem segurança, seu próprio mal o torna conformado".
A maior carência : a falta de sabedoria
Essas palavras levaram Licêncio e os demais a rirem.
— Contudo, continuei: examinemos com mais atenção esse problema. Orata sentia-se sem segurança, mas não se achava na indigência. E é aqui que se encontra a questão. Com efeito, encontrar-se na indigência consiste em não ter o que se necessita; e não no receio de perder o que se possui. Ora, esse homem de quem falamos não se encontrava na indigência, mas era infeliz porque temia a perda de seus bens. Portanto, não seria exato dizer que todo homem infeliz está na carência de alguma coisa. Minha mãe, cuja opinião eu defendera (cf. IV,23), deu assim como os outros o seu assentimento à minha conclusão. Acrescentou em seguida:
— Contudo não vejo, e ainda não compreendo bem, como se pode separar indigência da infelicidade. Porque esse Orata ainda que fosse rico e, como dizíeis, nada ambicionasse a mais, acontece pelo fato mesmo de temer a perda de todos os seus bens, encontrava-se na indigência. Faltava-lhe justamente a sabedoria. E, então, haveríamos de declarar ser alguém indigente por lhe faltar dinheiro e riqueza e não por lhe faltar sabedoria?
A essas palavras, todos prorromperam em exclamações. Eu mesmo não me sentia pouco satisfeito, especialmente por ter sido minha mãe quem enunciara um dito tão importante como conclusão. Havia eu justamente preparado essa afirmação para o final, tirada dos mais notáveis escritos dos filósofos.
— Percebeis agora, concluí, qual a diferença existente entre conhecer múltiplas e diversas doutrinas e ter o espírito inteiramente voltado para Deus? Pois essas palavras que acabamos de admirar, de onde procedem elas a não ser daquela divina fonte?
Aqui, Licêncio exclamou com alegria:
— Certamente, não poderia ser dito nada de mais verdadeiro nem de mais divino. Porque, de fato a maior e mais deplorável indigência é a privação da sabedoria. Ao contrário, nada pode faltar a quem possui a sabedoria.
(Continua)
(Por Aurelius Augustinus *354 +430).
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