10/06/2012 (Domingo)
ILUMINE-SE!
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OS DIREITOS AUTORAIS DE "SOLILÓQUIOS E A VIDA FELIZ" JÁ CADUCARAM, POIS O AUTOR FALECEU NO ANO 430 DE NOSSA ERA. PORTANTO, HÁ MAIS DE SETENTA ANOS. POSSO POSTAR, VOCÊ PODE COPIAR. É DE DOMÍNIO PÚBLICO. LEI 9610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 - ART. 41. OS DIREITOS PATRIMONIAIS DO AUTOR PERDURAM POR SETENTA ANOS CONTADOS DE 1° DE JANEIRO DO ANO SUBSEQÜENTE AO DE SEU FALECIMENTO, OBEDECIDA A ORDEM SUCESSÓRIA DA LEI CIVIL. PARÁGRAFO ÚNICO. APLICA-SE ÀS OBRAS PÓSTUMAS O PRAZO DE PROTEÇÃO A QUE ALUDE O CAPUT DESTE ARTIGO.
Passar necessidade e ser infeliz se identificam?
No terceiro dia de nossos colóquios, dissipou-se a nebulosidade matinal que nos obrigara a instalar-nos na sala de termas. Após o meio-dia, o céu tornou-se puríssimo. Decidimos com agrado descer até o campo próximo. Tendo cada um se instalado comodamente, prosseguimos o último tema do colóquio da véspera. Iniciei:
— Obtive e retenho as adesões apresentadas pelo grupo às minhas questões. Para hoje — a fim de podermos terminar este festim e descansar em seguida por alguns dias — nada ou quase nada terei a me responder, conforme presumo. Foi dito por minha mãe que a infelicidade não é outra coisas senão carência. E todos nós concordamos que os indigentes é que são infelizes (cf. III,22). Contudo, não chegamos a esclarecer, ontem, a seguinte questão: são todos os infelizes necessitados de algo? Caso a razão chegue a nos demonstrar que assim é, teremos encontrado quem seja feliz: a pessoa que não padece de indigência alguma. Já que quem não é infeliz é feliz, será feliz quem não sofre necessidade. Isso caso fique confirmada a identidade entre o que denominamos indigência e infelicidade.
Inconsequências lógicas
— Pois então, indagou Trigésio, não se pode deduzir ser feliz quem não está na indigência pelo fato de ser manifestamente infeliz o indigente? Ora, lembro-me de que já concordamos sobre isso (III,22), e de que não existe meio-termo entre a miséria e a infelicidade.
— E a teu entender, repliquei, existe meio-termo entre um ser morto e um ser vivo? Não é toda pessoa um ser vivo ou um ser morto?
— Confesso também não existir aí meio-termo. Mas aonde queres chegar com essa questão?
— Eis: penso que admites estar bem morto aquele que foi enterrado há um ano?
Trigésio não contradisse.
— Nesse caso todo homem que não estiver enterrado há um ano, estará ainda vivo?
— Essa consequência não se segue, retorquiu ele.
— Também do fato de que "todo indigente é infeliz" não se segue que "quem não estiver na indigência será feliz", visto que entre o feliz e o infeliz como entre o vivo e morto não cabe estado intermédio.
Conceitos estoicos sobre a sabedoria da vida
Como alguns do grupo se mostravam um tanto lentos a compreender tal raciocínio, expliquei-lhes como pude e de diferentes modos, com palavras adequadas, conforme a capacidade de cada um.
— Ninguém duvida agora de que quem se encontra na indigência seja feliz? E não precisamos indagar se o sábio sofre de necessidades corporais, pois essas coisas não se fazem sentir na alma — sede da vida feliz. A alma do sábio é perfeita: ora, ao que é perfeito nada falta. Ele se servirá de tudo o que for necessário a seu corpo, e estiver ao seu alcance. E, caso contrário, a falta desses bens não conseguirá abatê-lo. Já que a característica do sábio é ser forte, e o forte nada tem a temer. Assim, o sábio não teme a morte corporal, nem os sofrimentos que não consegue expulsar, evitar ou retardar, com a ajuda daqueles bens, de cuja posse pode acontecer ver-se privado. Entretanto, não deixará de se servir honestamente desses bens, caso os possua. Desse modo, apresenta-se totalmente verdadeira a máxima:
"É tolice suportar o que se puder evitar".
Logo, o sábio evitará a morte e o sofrimento quando lhe for possível e conveniente. Deixando de o fazer, manifestar-se-ia como infeliz. Não por esses maléficos lhe serem funestos, mas porque, tendo tido a possibilidade de os evitar, não o fez. Isso é sinal evidente de tolice. Desse modo, por não os ter evitado, sua infelicidade viria não pelo fato de sofrer, mas sim por sua própria estultícia. E ainda, caso o sábio não consiga evitar os males, após ter-se empenhado ativamente no limite do conveniente, esses mesmos infortúnios inevitáveis, ao abaterem-se sobre ele, não o tornariam infeliz. Pois a seguinte máxima do mesmo poeta já citado¹ não é menos verdadeira:
"Já que as coisas não podem ser tal como queres, deseja apenas aquilo que for realizável".
Como poderia ser infeliz aquele a quem nada acontece contra a sua vontade? Pois ele não chega a desejar o que vê ser realizável. Sua vontade dirige-se somente a coisas possíveis. Tudo o que ele faz será conforme as prescrições da virtude e da divina lei da sabedoria. Bens esses, que de modo algum lhe poderão ser arrebatados.
(Por Aurelius Augustinus *354 +430).
¹ Trata-se do dramaturgo cômico, Terêncio, do qual se conhecem seis comédias. A primeira citação é da peça Eunuco, ato 4, cena 6. Esta última, da comédia Andria (Adriana), ato 2, cena 1.
Passar necessidade e ser infeliz se identificam?
No terceiro dia de nossos colóquios, dissipou-se a nebulosidade matinal que nos obrigara a instalar-nos na sala de termas. Após o meio-dia, o céu tornou-se puríssimo. Decidimos com agrado descer até o campo próximo. Tendo cada um se instalado comodamente, prosseguimos o último tema do colóquio da véspera. Iniciei:
— Obtive e retenho as adesões apresentadas pelo grupo às minhas questões. Para hoje — a fim de podermos terminar este festim e descansar em seguida por alguns dias — nada ou quase nada terei a me responder, conforme presumo. Foi dito por minha mãe que a infelicidade não é outra coisas senão carência. E todos nós concordamos que os indigentes é que são infelizes (cf. III,22). Contudo, não chegamos a esclarecer, ontem, a seguinte questão: são todos os infelizes necessitados de algo? Caso a razão chegue a nos demonstrar que assim é, teremos encontrado quem seja feliz: a pessoa que não padece de indigência alguma. Já que quem não é infeliz é feliz, será feliz quem não sofre necessidade. Isso caso fique confirmada a identidade entre o que denominamos indigência e infelicidade.
Inconsequências lógicas
— Pois então, indagou Trigésio, não se pode deduzir ser feliz quem não está na indigência pelo fato de ser manifestamente infeliz o indigente? Ora, lembro-me de que já concordamos sobre isso (III,22), e de que não existe meio-termo entre a miséria e a infelicidade.
— E a teu entender, repliquei, existe meio-termo entre um ser morto e um ser vivo? Não é toda pessoa um ser vivo ou um ser morto?
— Confesso também não existir aí meio-termo. Mas aonde queres chegar com essa questão?
— Eis: penso que admites estar bem morto aquele que foi enterrado há um ano?
Trigésio não contradisse.
— Nesse caso todo homem que não estiver enterrado há um ano, estará ainda vivo?
— Essa consequência não se segue, retorquiu ele.
— Também do fato de que "todo indigente é infeliz" não se segue que "quem não estiver na indigência será feliz", visto que entre o feliz e o infeliz como entre o vivo e morto não cabe estado intermédio.
Conceitos estoicos sobre a sabedoria da vida
Como alguns do grupo se mostravam um tanto lentos a compreender tal raciocínio, expliquei-lhes como pude e de diferentes modos, com palavras adequadas, conforme a capacidade de cada um.
— Ninguém duvida agora de que quem se encontra na indigência seja feliz? E não precisamos indagar se o sábio sofre de necessidades corporais, pois essas coisas não se fazem sentir na alma — sede da vida feliz. A alma do sábio é perfeita: ora, ao que é perfeito nada falta. Ele se servirá de tudo o que for necessário a seu corpo, e estiver ao seu alcance. E, caso contrário, a falta desses bens não conseguirá abatê-lo. Já que a característica do sábio é ser forte, e o forte nada tem a temer. Assim, o sábio não teme a morte corporal, nem os sofrimentos que não consegue expulsar, evitar ou retardar, com a ajuda daqueles bens, de cuja posse pode acontecer ver-se privado. Entretanto, não deixará de se servir honestamente desses bens, caso os possua. Desse modo, apresenta-se totalmente verdadeira a máxima:
"É tolice suportar o que se puder evitar".
Logo, o sábio evitará a morte e o sofrimento quando lhe for possível e conveniente. Deixando de o fazer, manifestar-se-ia como infeliz. Não por esses maléficos lhe serem funestos, mas porque, tendo tido a possibilidade de os evitar, não o fez. Isso é sinal evidente de tolice. Desse modo, por não os ter evitado, sua infelicidade viria não pelo fato de sofrer, mas sim por sua própria estultícia. E ainda, caso o sábio não consiga evitar os males, após ter-se empenhado ativamente no limite do conveniente, esses mesmos infortúnios inevitáveis, ao abaterem-se sobre ele, não o tornariam infeliz. Pois a seguinte máxima do mesmo poeta já citado¹ não é menos verdadeira:
"Já que as coisas não podem ser tal como queres, deseja apenas aquilo que for realizável".
Como poderia ser infeliz aquele a quem nada acontece contra a sua vontade? Pois ele não chega a desejar o que vê ser realizável. Sua vontade dirige-se somente a coisas possíveis. Tudo o que ele faz será conforme as prescrições da virtude e da divina lei da sabedoria. Bens esses, que de modo algum lhe poderão ser arrebatados.
(Por Aurelius Augustinus *354 +430).
¹ Trata-se do dramaturgo cômico, Terêncio, do qual se conhecem seis comédias. A primeira citação é da peça Eunuco, ato 4, cena 6. Esta última, da comédia Andria (Adriana), ato 2, cena 1.
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