09/06/2012 (Sábado)
ILUMINE-SE!
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OS DIREITOS AUTORAIS DE "SOLILÓQUIOS E A VIDA FELIZ" JÁ CADUCARAM, POIS O AUTOR FALECEU NO ANO 430 DE NOSSA ERA. PORTANTO, HÁ MAIS DE SETENTA ANOS. POSSO POSTAR, VOCÊ PODE COPIAR. É DE DOMÍNIO PÚBLICO. LEI 9610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 - ART. 41. OS DIREITOS PATRIMONIAIS DO AUTOR PERDURAM POR SETENTA ANOS CONTADOS DE 1° DE JANEIRO DO ANO SUBSEQÜENTE AO DE SEU FALECIMENTO, OBEDECIDA A ORDEM SUCESSÓRIA DA LEI CIVIL. PARÁGRAFO ÚNICO. APLICA-SE ÀS OBRAS PÓSTUMAS O PRAZO DE PROTEÇÃO A QUE ALUDE O CAPUT DESTE ARTIGO.
(Continuação)
Pode ser considerado feliz quem ainda está a procura de Deus?
Pelo menos, estamos bem de acordo sobre este ponto: É feliz o que tem Deus propício?
— Quisera estar de acordo, replicou Navígio, mas receio especialmente que venhas depois a concluir que os (filósofos) acadêmicos sejam felizes. A eles, que foram qualificados ontem, com o emprego de termo vulgar e pouco latino, mas na minha opinião, bem justo: "caducarii", isto é, epiléticos. Porque não posso crer que Deus seja molesto a quem O procura. E se não é justo afirmar tal coisa, segue-se que Deus será propício a todo aquele que O procura. Ora, quem possui a Deus favorável necessariamente será feliz. Acontece, porém, que quem está em busca ainda não possui o que deseja. Decorrerá daí que, a pessoa ainda não possuidora do ambicionado será feliz, coisa que ontem nos pareceu a todos absurdo, a tal ponto que julgávamos terem-se dissipado as trevas sobre a Academia. E com isso, Licêncio declarará ter sido eu punido por haver provado daquelas guloseimas nocivas à minha saúde. (Cf. II,14).
A benevolência de Deus traz felicidade
Nessa ocasião, minha mãe sorriu de novo.
— Para mim, disse Trigésio, não posso concordar tão depressa que Deus seja molesto a quem não é benévolo. Creio dever haver aí um meio-termo.
— Contudo, retorqui eu, a essa pessoa que dizes encontrar-se em estado intermediário, a quem Deus não é nem benévolo nem molesto, concedes que possua Deus de qualquer modo que seja?
Como ele hesitasse a responder, minha mãe interveio:
— Uma coisa é possuir a Deus; outra, não estar sem Ele.
— E o que vale mais, retomei eu, possuir a Deus ou não estar sem Ele?
— Pelo que posso compreender, ponderou ela, eis a minha opinião: quem vive mal possui a Deus, mas como distante (infestum). E quem quer que esteja à procura, sem todavia O ter encontrado ainda, não possui a Deus nem propício nem molesto. Contudo, não está sem Deus.
— É essa a opinião do grupo? Indaguei.
Disseram todos que sim.
— Dizei-me, pois, eu vos peço: não será Deus benévolo a quem Ele favorece?
— Sem dúvida, Ele o é, confirmaram em coro.
— E Deus não favorece a pessoa que O procura?
— Sim, favorece, foi a resposta geral.
— Por conseguinte, quem busca a Deus O tem benévolo, e quem possui a Deus benévolo será feliz. Logo, é feliz também aquele que está em busca de Deus. Como acontece que quem procura ainda não tem o que deseja, temos aí: quem ainda não possui o desejado é feliz?
— De modo algum, objetou minha mãe. Não me parece que seja feliz quem não possui o que deseja.
— Logo, repliquei, nem todo o que tem a Deus favorável é feliz?
— Se a razão impõe tal conclusão, retorquiu ela, não o poderei negar.
— Por conseguinte, chega a estas distinções: todo o que encontrou a Deus e O tem benévolo é feliz. Todo o que ainda busca a Deus tem-nO benévolo, mas ainda não é feliz. E, enfim, todo o que se afasta de Deus, por seus vícios e pecados, não somente não é feliz, mas sequer goza da benevolência de Deus.
Consiste a infelicidade na carência?
Esse meu raciocínio agradou a todos. Concluí então:
— Está bem. Receio, porém, que estejais embaraçados com o que concedemos anteriormente, a saber: todo aquele que não é feliz é infeliz. (cf. II,11). Daí seguiria a necessidade de ser considerada infeliz a pessoa que possuindo a Deus de modo benévolo, pelo fato mesmo de estar em busca de Deus, não é feliz. Ou acaso como diz Túlio:¹ "Chamamos ricos os proprietários de muitas terras, ao passo que consideramos pobres aqueles que possuem todas as virtudes".
Refleti, por conseguinte, ainda nisto: se é verdade que seja infeliz quem se encontra na indigência, será igualmente verdade que todo infeliz seja indigente? Seguir-se-ia daí, portanto, que a infelicidade consiste tão-somente na carência ou indigência. Opinião essa que ao ouvi-la ser exposta pensastes que eu a aprovaria. Pelo que, peço-vos reunir-vos, sem fastio, amanhã, em volta desta mesma mesa. Todos declararam que o fariam com o máximo prazer, então levantamo-nos dali.
(Por Aurelius Augustinus *354 +430).
¹Trata-se de Marco Túlio Cícero. O texto citado é extraído do discurso Pro Deiotario, cap. 26, tetrarca da Galícia.
Pode ser considerado feliz quem ainda está a procura de Deus?
Pelo menos, estamos bem de acordo sobre este ponto: É feliz o que tem Deus propício?
— Quisera estar de acordo, replicou Navígio, mas receio especialmente que venhas depois a concluir que os (filósofos) acadêmicos sejam felizes. A eles, que foram qualificados ontem, com o emprego de termo vulgar e pouco latino, mas na minha opinião, bem justo: "caducarii", isto é, epiléticos. Porque não posso crer que Deus seja molesto a quem O procura. E se não é justo afirmar tal coisa, segue-se que Deus será propício a todo aquele que O procura. Ora, quem possui a Deus favorável necessariamente será feliz. Acontece, porém, que quem está em busca ainda não possui o que deseja. Decorrerá daí que, a pessoa ainda não possuidora do ambicionado será feliz, coisa que ontem nos pareceu a todos absurdo, a tal ponto que julgávamos terem-se dissipado as trevas sobre a Academia. E com isso, Licêncio declarará ter sido eu punido por haver provado daquelas guloseimas nocivas à minha saúde. (Cf. II,14).
A benevolência de Deus traz felicidade
Nessa ocasião, minha mãe sorriu de novo.
— Para mim, disse Trigésio, não posso concordar tão depressa que Deus seja molesto a quem não é benévolo. Creio dever haver aí um meio-termo.
— Contudo, retorqui eu, a essa pessoa que dizes encontrar-se em estado intermediário, a quem Deus não é nem benévolo nem molesto, concedes que possua Deus de qualquer modo que seja?
Como ele hesitasse a responder, minha mãe interveio:
— Uma coisa é possuir a Deus; outra, não estar sem Ele.
— E o que vale mais, retomei eu, possuir a Deus ou não estar sem Ele?
— Pelo que posso compreender, ponderou ela, eis a minha opinião: quem vive mal possui a Deus, mas como distante (infestum). E quem quer que esteja à procura, sem todavia O ter encontrado ainda, não possui a Deus nem propício nem molesto. Contudo, não está sem Deus.
— É essa a opinião do grupo? Indaguei.
Disseram todos que sim.
— Dizei-me, pois, eu vos peço: não será Deus benévolo a quem Ele favorece?
— Sem dúvida, Ele o é, confirmaram em coro.
— E Deus não favorece a pessoa que O procura?
— Sim, favorece, foi a resposta geral.
— Por conseguinte, quem busca a Deus O tem benévolo, e quem possui a Deus benévolo será feliz. Logo, é feliz também aquele que está em busca de Deus. Como acontece que quem procura ainda não tem o que deseja, temos aí: quem ainda não possui o desejado é feliz?
— De modo algum, objetou minha mãe. Não me parece que seja feliz quem não possui o que deseja.
— Logo, repliquei, nem todo o que tem a Deus favorável é feliz?
— Se a razão impõe tal conclusão, retorquiu ela, não o poderei negar.
— Por conseguinte, chega a estas distinções: todo o que encontrou a Deus e O tem benévolo é feliz. Todo o que ainda busca a Deus tem-nO benévolo, mas ainda não é feliz. E, enfim, todo o que se afasta de Deus, por seus vícios e pecados, não somente não é feliz, mas sequer goza da benevolência de Deus.
Consiste a infelicidade na carência?
Esse meu raciocínio agradou a todos. Concluí então:
— Está bem. Receio, porém, que estejais embaraçados com o que concedemos anteriormente, a saber: todo aquele que não é feliz é infeliz. (cf. II,11). Daí seguiria a necessidade de ser considerada infeliz a pessoa que possuindo a Deus de modo benévolo, pelo fato mesmo de estar em busca de Deus, não é feliz. Ou acaso como diz Túlio:¹ "Chamamos ricos os proprietários de muitas terras, ao passo que consideramos pobres aqueles que possuem todas as virtudes".
Refleti, por conseguinte, ainda nisto: se é verdade que seja infeliz quem se encontra na indigência, será igualmente verdade que todo infeliz seja indigente? Seguir-se-ia daí, portanto, que a infelicidade consiste tão-somente na carência ou indigência. Opinião essa que ao ouvi-la ser exposta pensastes que eu a aprovaria. Pelo que, peço-vos reunir-vos, sem fastio, amanhã, em volta desta mesma mesa. Todos declararam que o fariam com o máximo prazer, então levantamo-nos dali.
(Por Aurelius Augustinus *354 +430).
¹Trata-se de Marco Túlio Cícero. O texto citado é extraído do discurso Pro Deiotario, cap. 26, tetrarca da Galícia.
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