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GALÁXIA, ALFA, Brazil
Simples como a brisa, complexo como nós. Nascido em 25/5/1925.

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quinta-feira, 31 de maio de 2012

O PROBLEMA DA FELICIDADE — A VIDA FELIZ

31/05/2012 (Quinta-feira)




ILUMINE-SE!
OS DIREITOS AUTORAIS DE "SOLILÓQUIOS E A VIDA FELIZ" JÁ CADUCARAM, POIS O AUTOR FALECEU NO ANO 430 DE NOSSA ERA. PORTANTO, HÁ MAIS DE SETENTA ANOS. POSSO POSTAR, VOCÊ PODE COPIAR. É DE DOMÍNIO PÚBLICO. LEI 9610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 - ART. 41. OS DIREITOS PATRIMONIAIS DO AUTOR PERDURAM POR SETENTA ANOS CONTADOS DE 1° DE JANEIRO DO ANO SUBSEQÜENTE AO DE SEU FALECIMENTO, OBEDECIDA A ORDEM SUCESSÓRIA DA LEI CIVIL. PARÁGRAFO ÚNICO. APLICA-SE ÀS OBRAS PÓSTUMAS O PRAZO DE PROTEÇÃO A QUE ALUDE O CAPUT DESTE ARTIGO.

(Continuação)


Constamos de corpo e alma.


— Será evidente a cada um de vós, que somos compostos de alma e corpo? Todos foram concordes, exceto Navígio, que declarou não saber.


— Mas, disse-lhe eu, pensas que ignoras tudo em geral, ou essa proposição é uma entre outras coisas que desconheces?


— Não creio que sou totalmente ignorante, respondeu ele.


— Podes, pois, dizer-nos alguma coisa do que sabes?


— Sim, posso.


— Se isso não te incomoda, dize-nos, pois. E como ele hesitasse, interroguei:


— Sabes, pelo menos, que vives?


— Isso eu sei.


— Sabes, portanto, que tens vida, visto que ninguém pode viver a não ser que tenha vida?


— Isso também sei.


— Sabes, igualmente, que possuis um corpo? Ele concordou.


— Sabes, então, que constas de corpo e vida?


— Sim, todavia tenho dúvidas se não existe alguma coisa a mais do que isso.


— Assim, não duvidas destes dois pontos: possuis um corpo e uma alma. Mas estás em dúvida se não existe outra coisa que seria para o homem um complemento de perfeição.


— É isso. Concordou ele.


— O que poderia ser, procuremos em outra ocasião, sendo possível. Peço agora, já que todos estamos de acordo em reconhecer que não pode existir homem algum sem corpo e alma, dizerem-me para qual dos dois elementos desejamos o alimento?


— Para o corpo, exclamou Licêncio. Os demais, porém, duvidavam, perguntando-se de diversas maneiras como poderia o alimento ser necessário ao corpo, quando o procurávamos para viver, e a vida não depende senão da alma.


— Intervim, dizendo: — Parece-vos que o alimento é feito unicamente para a parte do homem que vemos crescer e fortificar-se por meio dele? Foram todos dessa mesma opinião, exceto Trigésio que declarou:


— Por que, então, não chego a crescer em proporção ao meu grande apetite?


— A natureza, expliquei, fixou aos corpos a dimensão à qual pode atingir, mas sequer atingiriam essa dimensão se lhes faltasse o alimento. Constatamos facilmente esse fato nos animais. Todos sabem que os corpos vivos, sejam quais forem, definham sem o alimento.


— Definham, mas não encurtam, retorquiu Licêncio.


– Já temos o bastante para o meu propósito, concluí. Pois a questão era saber se o alimento é para o corpo. Ora, não há dúvida sobre isso, porque se for suprimido o corpo definha.


Todos aprovaram.
(Continua)


(Por Aurelius Augustinus *354 +430).

quarta-feira, 30 de maio de 2012

DEDICATÓRIA A MÂNLIO TEODORO (IV) — A VIDA FELIZ

30/05/2012 (Quarta-feira)




ILUMINE-SE!
OS DIREITOS AUTORAIS DE "SOLILÓQUIOS E VIDA FELIZ" JÁ CADUCARAM, POIS O AUTOR FALECEU NO ANO 430 DE NOSSA ERA. PORTANTO, HÁ MAIS DE SETENTA ANOS. POSSO POSTAR, VOCÊ PODE COPIAR. É DE DOMÍNIO PÚBLICO. LEI 9610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 - ART. 41. OS DIREITOS PATRIMONIAIS DO AUTOR PERDURAM POR SETENTA ANOS CONTADOS DE 1° DE JANEIRO DO ANO SUBSEQÜENTE AO DE SEU FALECIMENTO, OBEDECIDA A ORDEM SUCESSÓRIA DA LEI CIVIL. PARÁGRAFO ÚNICO. APLICA-SE ÀS OBRAS PÓSTUMAS O PRAZO DE PROTEÇÃO A QUE ALUDE O CAPUT DESTE ARTIGO.

(Continuação)

Insistente apelo a Mânlio Teodoro.

Vês assim em que filosofia navego, presentemente, como estando dentro de ancoradouro. Todavia, é tão vasto este porto que sua extensão não exclui de todo alguma possibilidade de extravio, ainda que menos perigosamente. Pois ignoro, até agora, a que porção da terra — que sem dúvida será a única ditosa — na qual poderei atracar e desembarcar. Não piso ainda em terra firme. Sinto-me em meio a dúvidas e hesitações sobre a questão da natureza da alma.

Suplico-te, pois, em nome de tua virtude, por tua bondade e pelos vínculos e relações que costumam unir as almas, estender-me a mão. Quero dizer: estima-me e, em troca, crê que eu te estimo e que me és muito querido. Se obtiver o que desejo, bastar-me-á um ligeiro esforço para atingir, sem dificuldade, aquela vida feliz, a qual já desfrutas, como penso.


Quero te dar a conhecer minha conduta atual. Como reúno neste porto todos os meus amigos. Por aí, me conhecerás melhor, assim como o estado do meu espírito. E, visto que não encontro outro sinal melhor para me revelar a ti, pensei em te enviar o primeiro dos meus diálogos — o que me parece ser o mais religioso e o mais digno de ser dedicado a teu nome. Oferta esta que julgo corresponder de modo justo a meu intento, posto que tratamos entre nós a respeito da vida feliz. Nada vejo de mais apropriado do que tal vida, a merecer o título de dom de Deus.


Tua eloquência não me intimida, pois não posso temer o que amo, embora não possa atingir a tua medida. Menos ainda temo, na verdade, a tua alta posição (fortuna). Elevada que seja, aparece-te a ela como coisa secundária. Ao passo que seria suficiente para tornar plenamente feliz aqueles a quem ela subjuga.


Peço-te, agora, prestar atenção ao que te vou expor.


Ambientes e participantes do colóquio.


Era 13 de novembro, dia de meu natalício.
Após frugal refeição, para o espírito não ficar em nada molestado, convoquei a todos com quem convivia — não somente naquele dia, mas de modo habitual. Reuni-os na sala de banhos, lugar tranquilo e adequado quanto à temperatura do momento.


Estava ali — e não hesito em apresentá-los pelo nome, à tua particular benevolência — primeiramente, nossa mãe, a cujos méritos, estou persuadido, devo tudo o que vivo. Navígio, meu irmão. Trigésio e Licênio, meus concidadãos e discípulos. Não quis que ficassem ausentes meus primos Lastidianos e Rústico, ainda que não houvessem frequentado a escola de nenhum Grammaticus. Para o que planejávamos, julguei o seu bom senso poder nos prestar auxílio. Enfim, também se encontrava presente o menor de todos pela idade, mas cuja inteligência — se o amor não me leva a engano — promete grandes coisas: Adeodato, meu filho.


Estando todos atentos, assim comecei:
(Continua)


(Por Aurelius Augustinus *354 +430).

terça-feira, 29 de maio de 2012

DEDICAT'ÓRIA A MÂNLIO TEODORO (III) — A VIDA FELIZ

29/05/2012 (Terça-feira)




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OS DIREITOS AUTORAIS DE "SOLILÓQUIOS E VIDA FELIZ" JÁ CADUCARAM, POIS O AUTOR FALECEU NO ANO 430 DE NOSSA ERA. PORTANTO, HÁ MAIS DE SETENTA ANOS. POSSO POSTAR, VOCÊ PODE COPIAR. É DE DOMÍNIO PÚBLICO. LEI 9610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 - ART. 41. OS DIREITOS PATRIMONIAIS DO AUTOR PERDURAM POR SETENTA ANOS CONTADOS DE 1° DE JANEIRO DO ANO SUBSEQÜENTE AO DE SEU FALECIMENTO, OBEDECIDA A ORDEM SUCESSÓRIA DA LEI CIVIL. PARÁGRAFO ÚNICO. APLICA-SE ÀS OBRAS PÓSTUMAS O PRAZO DE PROTEÇÃO A QUE ALUDE O CAPUT DESTE ARTIGO.

(Continuação)

Agostinho expõe as etapas de sua navegação ao encalço da vida feliz.

Já que é assim, saiba ó meu caro Teodoro, como para chegar até aonde aspiro, fixo os olhos sobre ti, somente sobre ti, que não cesso de considerar como o mais capaz de me ajudar.

Reconhece, insisto, entre essas três categorias de navegantes, em qual delas me encontro a teu lado, qual o lugar em que me julgo situar e que tipo de auxílio espero de ti, com total confiança.


Tendo chegado à idade de dezenove anos, após ter conhecido na escola de retórica o livro de Cícero, intitulado "Hortêncio", senti-me inflamado de tal amor pela filosofia que pensei em me dedicar a ela sem reservas. Mas não me faltaram névoas a perturbarem minha navegação. Por muito tempo, asseguro-te, fixei os olhos sobre os astros que declinam no horizonte a induzirem-me ao erro. Pois uma espécie de escrúpulo supersticioso e pueril retinha meu espírito longe da investigação. Ao ir crescendo, porém, consegui dissipar tais névoas. Persuadi-me de que devia crer mais naqueles que ensinam do que nos emissores de ordens para crer. Caí sob a influência de homens que sustentavam um ser a luz física que percebemos com os olhos corporais digna do culto reservado à realidade suprema e divina.¹ Não dava, porém, pleno consentimento a essas ideias. Supunha que aqueles homens escondiam, atrás de véus, grandes verdades que haveriam de me revelar a seu tempo.


Enfim, após ter discutido com eles, abandonei-os. Tendo percorrido aquele mar por muito tempo, entreguei em seguida o timão de meu barco aos acadêmicos.² Foi ele então sacudido por toda espécie de ventos, em meio a vagalhões.


Finalmente, vim aportar nestas terras. Aqui aprendi a reconhecer a estrela polar (septentrionem), na qual pude confiar. Efetivamente, observei com frequência, nos sermões de nosso bispo e também em algumas conversas contigo, ó Teodoro, que da ideia de Deus deve ser excluída, absolutamente, qualquer imagem material. Diga-se o mesmo da ideia de alma, pois é ela, entre todas as realidades, a mais próxima de Deus.


Confesso-te, todavia, que o apego a uma mulher e a atração pelas honras impediam-me de voar, com prontidão, até o seio da Filosofia. Propunha-me lançar-me a velas despregadas e na força total dos remos, em direção ao porto da filosofia — como logram poucos e ditosíssimos varões — só após ter realizado aqueles meus desejos. Gozaria, então, da almejada paz!


Li entrementes algumas poucas obras de Platão, pelo qual tu te sentes fortemente atraído. Confrontava, quando podia, o valor de tais opiniões, com a autoridade dos livros que nos transmitem os divinos mistérios. Fui abrasado de tal ardor, que se não fosse por consideração a certos amigos teria rompido todas as minhas cadeias.


Que recurso me sobrava, a não ser uma tempestade — por mim considerada como algo adverso — a vir abalar as incertezas que me retinham? Foi então que fui tomado de agudíssima dor de peito que me incapacitou de assumir por mais tempo o peso de uma profissão que me fazia, sem dúvida, navegar em direção ao rochedo das Sereias.


Renunciei a tudo e conduzi meu barco, abalado e avariado, ao suspirado porto da tranquilidade.
(Continua)


(Por Aurelius Augustinus *354 +430)


¹ Referência aos maniqueus com os quais Agostinho se relacionou durante nove anos com o objetivo de encontrar, em sua doutrina, a verdade, conforme relata nas Confissões III,6,10: "Homens, cujos corações eram vazios de verdade, repetiam: Verdade, verdade! Falavam-me muito dela, mas não as possuíam, pelo contrário, ensinavam falsidades".
² Desiludido com os maniqueus, Agostinho refugia-se entre os acadêmicos, seita filosófica cujo princípio fundamental era a dúvida universal, gerando em seus seguidores indiferença e ceticismo. Nas Confissões VI,2,2 referindo-se a esse período, comenta: "Ambrósio não sabia que filho era eu, cético a respeito de Tu, e convicto de não poder encontrar o caminho da vida".

segunda-feira, 28 de maio de 2012

DEDICATÓRIA A MÂNLIO TEODORO (II) — A VIDA FELIZ

28/05/2012 (Segunda-feira)




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(Continuação)
Dedicatória a Mânlio Teodoro (II)

O escolho do orgulho.

Ora, todos esses navegantes levados de diversas maneiras à terra da vida feliz hão de temer com veemência e evitar com suma cautela alto escolho que se ergue na entrada mesma do porto, oferecendo grandes perigos aos que aí ingressam. Ele resplandece, está revestido de tão enganosa luz, que não somente aos que chegam e se encontram na iminência do ingresso se apresenta como terra amena, prometendo satisfazer suas aspirações à terra venturosa. De igual modo, cativa e alucina os que já se encontram no porto. Isso por sua bela altura de onde os que lá se encontram comprazem-se em considerar com desdém os demais. Entretanto, fazem sinais aos que se aproximam daquela terra, para evitarem os escolhos ocultos na água. Ou, ainda, apregoam ser fácil a subida até o cimo onde se acham colocados. Indicam até com benevolência por onde devem bordejar sem perigo. Cheios da vanglória com que se pavoneiam, mostram aos outros um lugar de segurança no porto.

Ora, que outro rochedo a razão indica como temível aos que se aproximam da filosofia do que esse, da busca orgulhosa da vanglória? Pois esse rochedo é oco interiormente e sem consistência. Aos que se arriscam a caminhar sobre ele, abre-se o solo a tragá-los e sorvê-los, submergindo-os em profundas trevas. Desvia-os assim da esplêndida mansão que haviam apenas entrevisto.
(Continua)

(Por Aurelius Augustinus *354 +430

domingo, 27 de maio de 2012

DEDICATÓRIA A MÂNLIO TEODORO — A VIDA FELIZ

27/05/2012 (Domingo)




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A viagem em direção ao porto da Sabedoria.

Se fosse possível atingir o porto da Filosofia — único ponto de acesso à região e à terra firme da vida feliz —, numa caminhada exclusivamente dirigida pela razão e conduzida pela vontade, talvez não fosse temerário afirmar, ó magnânimo e ilustre Teodoro, que o número dos homens a lá chegar seria ainda mais diminuto do que aqueles que atualmente aportam a esse porto, já tão raros e escassos se apresentam eles.

Com efeito, estamos lançados neste mundo, como em mar tempestuoso, e por assim dizer, ao acaso e à aventura — seja por Deus, seja pela natureza, seja pelo destino (necessitas), seja ainda por nossa própria vontade. Sucessivamente, por algumas dessas conjunturas, ou talvez, por todas elas reunidas. A questão é muito obscura, mas tu já resolveste desvendá-la.

Poucos saberiam qual o caminho do retorno ou que esforços empenhar, caso não se levantasse alguma tempestade — consideradas pelos insensatos como calamitosa —, para dirigí-lo à terra de suas ardentes aspirações. Pois são navegantes ignorantes e erradios.

Três tipos de navegantes rumo à Filosofia

Entre os homens susceptíveis de serem acolhidos pela Filosofia, creio distinguir como que três espécies de navegantes. 

A primeira é daqueles que, tendo chegado à idade em que a razão domina, afastam-se da terra, mas não demasiadamente. Com pequeno impulso e algumas remadas chegam a fixar-se em algum lugar de tranquilidade, de onde manifestam sinais luminosos, por meio de obras realizadas na intenção de atingir o maior número possível de seus concidadãos, para estimulá-los a virem ao seu encalço.

A segunda espécie de navegantes, ao contrário da primeira, é constituída dos que, iludidos pelo aspecto falacioso do mar, optam por lançar-se ao longe. Ousam aventurar-se distante de sua pátria e, com frequência, esquecem-se dela. Se a esses, não sei por qual inexplicável mistério, sopra-lhes vento em poupa, perdem-se nos mais profundos abismos da miséria. Consideram-nos, porém, como fator de gozo e orgulho, pois de todo lado lhe sorri a falsa serenidade de prazeres e honras. A tais enfatuados, o que se pode desejar de mais benéfico do que algum revés ou contrariedade? E se tal não fosse suficiente, augurar que caia sobre eles forte tempestade, soprem ventos adversos para os levar de volta — mesmo chorando e gemendo — às alegrias firmes e seguras.


Nessa segunda categoria, entretanto, sucede que alguns, por não se terem arriscado longe demais, são trazidos de volta ao porto, graças a adversidade menos danosa. Tais, por exemplo, os que sofrem alguma vicissitude em seus bens ou grave dificuldade em seus negócios. A esse contato, acordam, de certa forma, no porto de onde não mais os tirará nenhuma promessa, nenhum sorriso ilusório do mar.


Finalmente, há terceira categoria de navegantes, a meio-termo entre as outras duas. Compreende os que, desde o limiar da adolescência ou após terem sido longa e prudentemente balançados pelo mar, não deixam de dar sinais de se recordarem da doce pátria, ainda que no meio de vagalhões. Poderiam então recuperá-la, de imediato, sem se deixar desviar ou atrasar. Frequentemente, porém, acontece que perdem a rota em meio a nevoeiros, ou fixam astros que declinam no horizonte. Deixam-se reter pelas doçuras do percurso. Perdem a boa oportunidade do retorno. Erram longamente e, muitas vezes, correm até o risco de naufrágio. A tais homens sucede, por vezes, que alguma infelicidade advém, em meio às suas frágeis prosperidades, como por exemplo, uma tempestade a desbaratar seus projetos. Serão assim reconduzidos à desejadíssima e aprazível pátria, onde recuperarão o sossego.
(Continua)


(Por Aurelius Augustinus *354 +430). 

sábado, 26 de maio de 2012

A ESSÊNCIA DA OBRA — A VIDA FELIZ

26/05/2012 (Sábado)




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(Continuação)
A Vida Feliz — Introdução III:


A essência da obra:


Na obra A Trindade, escrita uns vinte anos após sua conversão à vida cristã, Agostinho mostra quanto mudou de óptica, a respeito da felicidade, ao comentar essa máxima de Terêncio: querer o que se pode, quando não se pode o que se quer. Agostinho reconsidera-a assim: "Essa é a felicidade ridícula, ou digna de compaixão dos mortais soberbos que se gloriam de viver como querem, por terem de suportar com paciência o que certamente desejariam evitar. Conselho esse, dizem eles, sabiamente dado por Terêncio: "Porque não é possível fazer o que queres, deseja o que podes". Máxima essa bastante cômoda, quem o nega? O viver em plena felicidade não é próprio desta vida mortal. Só o será quando aparecer a imortalidade... Sem a imortalidade não existe a felicidade"(Lc 13,7-10).


No presente diálogo, embora ainda não fruto de longa experiência cristã, Agostinho rompe com a tradição filosófica e propõe não mais a filosofia como porto da felicidade, mas a posse de Deus. Só a posse de Deus garante e produz a felicidade: se alguma coisa merece ser designada como dom de Deus, certamente é a vida feliz.


Agostinho estabelece, então, uma relação sistemática entre os escritos filosóficos antigos, que trataram deste tema fundamental, e sua visão de convertido ao cristianismo, para elaborar o estudo da felicidade. Na sua ampla produção, expõe com clareza: o fundamento e o ponto de partida; o conceito de felicidade; as condições da felicidade como estado; o objetivo verdadeiro no qual ela consiste e o ato beatificante; a falsa felicidade; o meio para chegar à felicidade verdadeira; a felicidade terrestre e a felicidade perfeita.


Num primeiro momento, superando a "soteriologia" produzida pelo conhecimento perfeito dos gnósticos e da ética estoica, centrada na posse e no gozo de si mesmo, a tese principal que Agostinho desenvolve, em A vida feliz, é esta: a vida feliz consiste no perfeito conhecimento de Deus. Por isso, ele não faz consistir a felicidade na posse ou no gozo de qualquer bem criado, mas só na posse ou gozo do Bem absoluto e perfeito.


A vida feliz sobre a terra é possível somente na esperança. A relação entre a sabedoria, a verdade e a medida, remonta Agostinho à mesma fonte da perfeita felicidade: "Pois a perfeita plenitude das almas, a qual torna a vida feliz, consiste em conhecer piedosa e perfeitamente: — Por quem somos guiados até a Verdade (o Pai); — e qual Verdade gozamos (o Filho); — e por qual vínculo estamos unidos à Suma Medida (o Espírito Santo) (IV,35). A felicidade está centrada no conhecimento da Verdade na interioridade da alma. Conhecimento que, ao mesmo tempo, é posse e gozo de Deus: "feliz quem possui Deus". A sabedoria que nos dá a felicidade consiste em fruir, deleitar-se em Deus, a Verdade infinita, nosso Bem Supremo e Imutável. Nossa perfeição moral e nossa felicidade consistem em conhecer e amar este Sumo Bem.


(Por Aurelius Augustinus *354 +430).

sexta-feira, 25 de maio de 2012

A VIDA FELIZ — INTRODUÇÃO II

25/05/2012 (Sexta-feira)




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(Continuação)
A Vida Feliz — Introdução II:


A importância do tema na Antiguidade:


Os grandes filósofos da Antiguidade dedicavam-se à filosofia como caminho que conduz à felicidade. De maneira simplificada, poderíamos dizer que o esquema filosófico era este: há uma filosofia especulativa e uma filosofia prática. A ética e a política pertencem a filosofia prática porque dizem respeito à conduta dos homens e aos fins que querem atingir. As ações humanas objetivam alcançar os "fins", os "bens". Tanto as ações humanas quanto os "fins-bens" particulares para os quais tendem, subordinam-se a um "fim último". Este "fim último" é o "bem supremo" que os homens sensatos concordam em chamar de "felicidade". Mas que coisa é a felicidade? O prazer e o gozo para uns. A honra, a riqueza, a glória para outros.


Filósofos como Sócrates, Platão, Aristóteles, combateram estas concepções "materialistas", "mundanas" de felicidade. Para eles, a felicidade, isto é, a posse do "bem supremo" consiste em aperfeiçoar-se como homem, ou seja, em desenvolver aquelas atividades que diferenciam o homem de todas as outras coisas. Aristóteles chega até mesmo a dizer que empregar a vida para se conseguir o prazer torna-nos "semelhantes aos escravos" e lança-nos numa vida "digna dos animais". O sucesso é algo extrínseco que não depende de nós, mas de quem no-lo confere. A riqueza torna o homem insensato, pois quem quiser viver feliz deve viver segundo a razão, não segundo a riqueza.


Cícero torna-se o grande divulgador, em língua latina, das filosofias gregas, particularmente do estoicismo e do epicurismo, fundindo-os num ecletismo. Na sua obra De finibus bonorum et malorum e certamente também no Hortensius, Cícero tratou frequentemente desse tema. Agostinho adota, sem hesitação, essas ideias ao expor a atitude do sábio diante dos bens materiais, e ao fazer consistir a felicidade na razão. Mais tarde, nas Retrationes, lamentará ter escrito que a felicidade reside unicamente na alma do sábio, seja qual for o estado do seu corpo. Para os estoicos, especialmente, o sábio era o homem perfeito e o mais equilibrado da humanidade. Corrigindo-se, Agostinho dirá que não existe senão uma vida que mereça ser chamada feliz: a vida futura. Nesse período, participava ainda da mentalidade dos filósofos da Antiguidade. Suas primeiras obras ressoam os ecos dessa filosofia, que, pouco a pouco, sublinhará e enriquecerá com os valores cristãos. Recém-convertido, não havia ainda aprofundado nas Escrituras e pouco ou nada sabia da literatura exegética, apologética, dogmática e histórica dos Padres que o precederam. Ainda em Retrationes 3, expressando certo arrependimento do que escrevera nesse período, declara: " ... estão elas (as obras deste período) cheias dos hábitos literários do século. Tais livros podem ser lidos com utilidade, se forem perdoadas algumas faltas. Desse modo, todos os que lerem tais escritos não me imitem nos erros, e sim nos progressos que vim a fazer, em vista de melhorar".
(Continua)


(Por Aurelius Augustinus *354 +430).

quinta-feira, 24 de maio de 2012

INTRODUÇÃO À VIDA FELIZ

24/05/2012 (Quinta-feira)




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A Vida Feliz — Introdução:


Origem do livro


Era fim do outono de 386, precisamente, 13 de novembro, data do 32º aniversário de Agostinho. Reunido com seus amigos e discípulos: Alípio, Licêncio, Trigésio, seu irmão Navígio, seu filho Adeodato e sua mãe Mônica, na chácara cedida por seu amigo Verecundo, em Cassicíaco, Agostinho conduzirá um diálogo em torno de um tema clássico e fundamental para a antiguidade: a felicidade. Desses três dias de diálogo nasceu a obra, A vida feliz. Trata-se de um diálogo filosófico na mesma linha das outras obras produzidas neste retiro: Contra os Acadêmicos, A ordem e os Solilóquios.


Para melhor informação sobre esta obra, deixemos falar o próprio Agostinho. Nos últimos anos de sua vida, fazendo a revisão de suas obras, a respeito dessa, A vida feliz, declara: "Este livro... Começado por ocasião do aniversário do meu nascimento, foi terminado após três dias de discussão, como está bem indicado aí. Nesse livro concordamos que prosseguíamos juntos a busca — que não há vida feliz a não ser no perfeito conhecimento de Deus. Desagrada-me ter dado a Mânlio Teodoro, a quem dediquei o livro — se bem que fosse homem douto e cristão — mais elogios do que devia. Também lamento haver mencionado diversas vezes o tema fortuna. Enfim, ter declarado que, no curso da vida presente, a vida feliz existe no sábio exclusivamente, e em sua alma, qualquer que seja o estado do seu corpo. Com efeito, o conhecimento perfeito de Deus, isto é, aquele melhor do qual o homem nada pode possuir, o Apóstolo o espera só para a vida futura (I Cor 13,12). Ela, unicamente, merece o nome de vida feliz, porque o corpo, já então incorruptível e imortal, estará submetido ao espírito, sem nenhuma fraqueza ou resistência (I Cor 15,42ss). Em nosso manuscrito encontrais, de fato, este livro incompleto e apresentando não poucas lacunas. Fora assim copiado por alguns irmãos e eu não consegui encontrar um exemplar completo, pelo qual pudesse corrigí-lo e revê-lo... (Retractationes I,2).


O tema da felicidade foi, certamente, despertado em Agostinho a partir da leitura do Hortênsio de Cícero, obra que o converteu ao gosto da filosofia. A obra de Cícero, de fato, repassava, num exame crítico, todas as escolas e seitas filosóficas, assinalando os erros de cada uma delas, para concluir num ecletismo filosófico ideal e temperado. A obra despertou Agostinho para a busca da verdadeira felicidade, da verdade e da sabedoria. Cícero defendia um conceito de filosofia como sabedoria e arte de viver que traz a felicidade verdadeira. Agostinho começou a crer que a filosofia lhe possibilitaria a felicidade que tanto procurava. 
(Continua)


(Por Aurelius Augustinus *354 +430).

quarta-feira, 23 de maio de 2012

CREMOS EM ALGUMAS COISAS; RECORDAMOS OUTRAS; OUTRAS NÃO SE PERCEBEM — SOLILÓQUIOS

23/05/2012 (Quarta-feira)




ILUMINE-SE!
OS DIREITOS AUTORAIS DE "SOLILÓQUIOS E VIDA FELIZ" JÁ CADUCARAM, POIS O AUTOR FALECEU NO ANO 430 DE NOSSA ERA. PORTANTO, HÁ MAIS DE SETENTA ANOS. POSSO POSTAR, VOCÊ PODE COPIAR. É DE DOMÍNIO PÚBLICO. LEI 9610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 - ART. 41. OS DIREITOS PATRIMONIAIS DO AUTOR PERDURAM POR SETENTA ANOS CONTADOS DE 1° DE JANEIRO DO ANO SUBSEQÜENTE AO DE SEU FALECIMENTO, OBEDECIDA A ORDEM SUCESSÓRIA DA LEI CIVIL. PARÁGRAFO ÚNICO. APLICA-SE ÀS OBRAS PÓSTUMAS O PRAZO DE PROTEÇÃO A QUE ALUDE O CAPUT DESTE ARTIGO.


Este é o último capítulo de Solilóquios.
(Continuação)
Cremos em algumas coisas; recordamos outras; outras não se percebem.


A — Seja como dizes e de boa vontade sigo os teus conselhos. Mas eu gostaria que, antes de terminar este volume, ao menos me esclarecesses qual a diferença entre a verdadeira figura, que se concebe pela inteligência, e aquela que o pensamento simula pela imaginação, que em grego se diz fantasia ou fantasma.


R — Tu pedes uma coisa que ninguém pode ver se não tiver muita limpidez de mente e para cuja visão estás pouco exercitado. Aliás, não fazemos outra coisa, com todos esses rodeios, senão fazer com que te exercites para estar apto a vê-la. Contudo, à medida que possas ser ensinado, explanares brevemente a grande diferença que existe. Supõe que tenhas esquecido alguma coisa e que outros queiram que te recordes daquilo. Então eles, mencionando coisas diversas como se fossem semelhantes, te perguntam: é isso ou aquilo? Mas nem sequer lhe vem à mente aquilo que desejas recordar e, contudo, vês que não é o que eles mencionam. Quando isto acontece, achas que é esquecimento total? Já o próprio discernimento, pelo qual não admites ser erroneamente convencido, de certo modo é parte da recordação.


A — Assim me parece.


R — Aqueles com  os quais isto acontece ainda não veem a verdade, mas não podem ser enganados nem induzidos a erro e sabem suficientemente o que buscam. Entretanto, se alguém te disser que sorriste alguns dias depois de ter nascido, não ousas afirmar que isto é mentira; e se a pessoa que o afirma é digna de fé, não se diz que recordar-te-ás disso, mas sim acreditarás, pois todo aquele tempo está sepultado por um grande esquecimento. Acaso julgas diferentemente?


A — Ao contrário, concordo com isso.


R — Esse tipo de esquecimento difere muito daquele outro, que se considera esquecimento intermédio. Há outro tipo de esquecimento mais vizinho e mais próximo à  recordação e verdade que se quer saber. Isso ocorre quando vemos alguma coisa e com certeza reconhecemos que a vimos alguma vez e afirmamos que a conhecemos; mas esforçamo-nos em lembrar-nos e relembrar-nos de onde, quando, como e com quem nos chegou ao conhecimento. Se isso se refere a uma pessoa, procuramos também identificar onde viemos a conhecê-la. E se essa pessoa nos der algum indício, de repente tudo se infunde na memória como se fosse uma luz, sem necessidade de mais esforço para nos recordarmos. Conheces esse tipo de coisas, ou te é desconhecido?


A — Que há de mais claro que isso? Com muita frequência acontece comigo.


R — Assim são os bem instruídos nas artes liberais, já que eles, aprendendo, as resolvem e, de certo modo, as escavam, pois sem dúvida estavam soterradas neles pelo esquecimento. Contudo, não estão contentes nem desistem enquanto não chegarem a contemplar ampla e plenamente toda a face da verdade, da qual certo esplendor já se projeta nessas artes. Mas destas, certas falsas cores e formas como que se fundem no espelho do pensamento e, com frequência, enganam os que investigam e os induzem a erro fazendo-os pensar que aquilo é tudo o que eles sabem e procuram. São as imaginações que devem ser evitadas com grande precaução; elas resultam enganosas, variando conforme se mude o espelho do pensamento, ao passo que a face da verdade permanece una e imutável. Então, o pensamento imagina e apresenta aos olhos quadrados de diferentes tamanhos, mas a mente interior, que quer perceber a verdade, deve voltar-se, se possível, àquele princípio segundo o qual ela julga que todos aqueles quadrados são simplesmente quadrados.


A — E se alguém nos disser que ela julga segundo o que os olhos costumam ver?




R — Mas, se está bem instruída, por que haverá de julgar que uma verdadeira esfera, por maior que seja, só tem um único ponto de contato com um plano verdadeiro? Por acaso o olho alguma vez viu ou pode ver isso, quando algo deste tipo nem se pode representar pela própria imaginação? Não é isso mesmo que experimentamos quando mentalmente traçamos imaginando um círculo mínimo e, depois, traçamos os raios ao centro? Se traçarmos dois raios entre os quais haja um intervalo que mal possa ser tocado pela ponta de uma agulha, já não podemos, nem mesmo com a imaginação, traçar outros raios no meio, que  cheguem ao centro sem nenhuma confusão. Entretanto, a razão declara que podem ser traçados inumeráveis raios que, naqueles espaços incrivelmente estreitos, não podem se tocar senão no centro, de tal modo que em cada intervalo entre os raios possa também ser traçado outro círculo. Uma vez que a imaginação não pode realizar isto e falha mais que os próprios olhos pelos quais ela penetrou na alma, fica evidente que ela difere muito da verdade e que ela não é vista, enquanto esta é objeto da visão.


Estas coisas serão discutidas com mais cuidado e maior sutileza quando começarmos a tratar da inteligência, que é uma parte que nos propusemos, quando, na medida de nossa possibilidade, estiver esclarecido e discutido tudo o que agita a respeito da vida da alma. Pois não creio que seja pequeno o seu medo de que a morte humana, ainda que não mate a alma, traga contudo o esquecimento de todas as coisas e da própria verdade que tenhamos descoberto.


A — Não se pode dizer o bastante quanto é terrível este mal. Pois que a vida eterna seria aquela, ou não se deveria até preferir a morte, se a alma viesse a viver do modo como vemos que vive numa criança  recém-nascida? Isto para não falar da vida no útero, pois acho que também aí existe alguma vida.


R — Coragem. Como já sentimos, Deus estará presente conosco que procuramos, o qual promete sem mentira alguma, para depois deste corpo, outro felissíssimo e pleníssimo da verdade.


A — Seja como esperamos.




(Por Aurelius Augustinus *354 +430).



FIM
Amanhã inicia-se o primeiro capítulo de "A Vida Feliz"— Santo Agostinho.

terça-feira, 22 de maio de 2012

A VERDADE IMORTAL É ARGUMENTO PARA A IMORTALIDADE DA ALMA — SOLILÓQUIOS

22/05/2012 (Terça-feira)



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OS DIREITOS AUTORAIS DE "SOLILÓQUIOS E VIDA FELIZ" JÁ CADUCARAM, POIS O AUTOR FALECEU NO ANO 430 DE NOSSA ERA. PORTANTO, HÁ MAIS DE SETENTA ANOS. POSSO POSTAR, VOCÊ PODE COPIAR. É DE DOMÍNIO PÚBLICO. LEI 9610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 - ART. 41. OS DIREITOS PATRIMONIAIS DO AUTOR PERDURAM POR SETENTA ANOS CONTADOS DE 1° DE JANEIRO DO ANO SUBSEQÜENTE AO DE SEU FALECIMENTO, OBEDECIDA A ORDEM SUCESSÓRIA DA LEI CIVIL. PARÁGRAFO ÚNICO. APLICA-SE ÀS OBRAS PÓSTUMAS O PRAZO DE PROTEÇÃO A QUE ALUDE O CAPUT DESTE ARTIGO.


(Continuação)
A verdade imortal é argumento para a imortalidade da alma.


R — Que necessidade existe de investigarmos ainda sobre a disciplina do método dialético? Quer estejam as figuras geométricas na verdade, quer esteja a verdade nelas, ninguém duvida que elas estão contidas em nossa alma, isto é, em nossa inteligência; e daí se conclui que também a verdade está em nossa alma. Se qualquer ciência está na alma como algo inseparável num sujeito — e a verdade não pode perecer — por que, então, duvidamos da vida perpétua da alma por influência não sei de que familiaridade com a morte? Por acaso, aquela linha, quadrado ou esfera, para serem verdadeiros, possuem algo que imitam?


A — De modo algum posso crer nisso, a não ser que a linha não seja um comprimento sem largura e a circunferência não seja uma curva fechada, cujos pontos equidistam do centro.


R — Por que, então, ficamos indecisos? Acaso a verdade não está onde há tais coisas?


A — Deus me livre de tal disparate.


R — Então, a ciência não está na alma.


A — Quem afirmaria isso?


R – Mas, talvez, pode ser que, morrendo o sujeito, permaneça aquilo que está no sujeito.


A — Quando me convencerei disso?


R — Só resta, então, que pereça a verdade.




A — Mas como isso pode ser possível?


R – Portanto, a alma é imortal: creia em seus raciocínio, creia na verdade; ela clama que habita em você e que é imortal e que sua sede não lhe pode ser tirada pela morte corporal. Afasta-te de tua sombra; volta-te para ti mesmo; não sofrerás destruição alguma a não ser esquecendo-te de que é algo que não pode perecer.


A — Estou ouvindo, estou recobrando o ânimo, começo a retornar a mim. Mas explica-me o que resta: como se entende que a ciência e a verdade estejam na alma do ignorante? (pois não podemos dizer que ela seja mortal).


R — Se quisermos discutir com toda diligência esta questão, ela deve ser tratada em outro volume. Agora acho que deves fazer uma revisão de tudo o que foi investigado na medida da nossa possibilidade. E se não houver nenhuma dúvida em relação aos assuntos com que concordamos, acho que avançamos muito e poderemos tratar de outros assuntos com bastante segurança.
(Continua)


(Por Aurelius Augustinus *354 +430).

segunda-feira, 21 de maio de 2012

ACASO O CORPO É VERDADEIRO? — SOLILÓQUIOS


21/05/2012 (Segunda-feira)



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OS DIREITOS AUTORAIS DE "SOLILÓQUIOS E VIDA FELIZ" JÁ CADUCARAM, POIS O AUTOR FALECEU NO ANO 430 DE NOSSA ERA. PORTANTO, HÁ MAIS DE SETENTA ANOS. POSSO POSTAR, VOCÊ PODE COPIAR. É DE DOMÍNIO PÚBLICO. LEI 9610, DE 19 DE FEVEREIRO DE 1998 - ART. 41. OS DIREITOS PATRIMONIAIS DO AUTOR PERDURAM POR SETENTA ANOS CONTADOS DE 1° DE JANEIRO DO ANO SUBSEQÜENTE AO DE SEU FALECIMENTO, OBEDECIDA A ORDEM SUCESSÓRIA DA LEI CIVIL. PARÁGRAFO ÚNICO. APLICA-SE ÀS OBRAS PÓSTUMAS O PRAZO DE PROTEÇÃO A QUE ALUDE O CAPUT DESTE ARTIGO.


(Continuação)
Acaso o corpo é verdadeiro?


R — O que afirmas dos demais assuntos?


A— O quê?


R — O que percebes que vem bem a meu favor. Pois restam a alma e Deus, e se estes dois são verdadeiros pelo fato de neles estar a verdade, ninguém duvida da imortalidade de Deus. Mas confia-se que a alma é imortal se prova que também nela está a verdade, que não pode perecer. Pelo que vejamos agora o último ponto: se o corpo não é realmente verdadeiro, isto é, se a verdade não está nele, mas se é como certa imagem da verdade. Pois se no corpo que, como se sabe, está sujeito à morte, encontrarmos a verdade tal qual existe nas ciências, não será necessariamente o método dialético daquela verdade pela qual sejam verdadeiras todas as ciências. Pois é verdadeiro também o corpo, que não parece ter sido formado pelo método dialético. Porém, se o corpo é verdadeiro em virtude de alguma imitação e, por esta razão, não pertence à verdade límpida, talvez nada haverá que impeça que se ensine o método dialético como sendo a própria verdade.


A — Entretanto, examinemos o corpo, pois não vejo que estará terminada esta controvérsia nem mesmo se chegarmos a alguma conclusão sobre isto.


R — Como sabes o que Deus quer? Por isso esteja atento: creio que o corpo é limitado por alguma forma e espécie, sem as quais não seria corpo. Se as tivesse verdadeiras, seria alma. Ou se deve julgar de diferente maneira?


A — Concordo em parte, quanto ao mais tenho dúvida; concedo que não é corpo se não estiver contido por uma figura. Mas não entendo bem como, se a tivesse verdadeira, seria alma.


R — Afinal não te lembras mais nada do início do livro I e das suas figuras geométricas?


A — Fizeste bem em lembrar-me; recordo muito bem.


R — As figuras se encontram nos corpos tais como são demonstradas por aquelas ciências?


A — Ao contrário, é incrível como são tão inferiores.


R — Quais delas achas que sejam verdadeiras?


A— Por favor, não inventes de perguntar-me mais isto. Quem possa ter uma mente tão cega que não perceba que as figuras na geometria estão na própria verdade, ou também a verdade nelas? E que as figuras do corpo, enquanto parecem tender àquelas, têm não sei que tipo de imitação da verdade e, por isso, são falsas? Agora entendo tudo o que intencionavas mostrar-me.
(Continua)


(Por Aurelius Augustinus *354 +430). 

EU VIM AQUI PARA TE DIZER QUE

TE AMO, IRMÃO; TE AMO IRMÀ
.


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